Kaspar
Não Quero Votar – Esta cédula é minha
Acordou com pancadas à porta do seu quarto. A polícia ostensiva da cidade acabara de adentrar em seu minúsculo apartamento. Assustado, pensou ainda em vestir suas calças curtas e camisa quando, pelo braço, levaram-no violentamente para fora do hotel. Apenas com uma larga roupa de baixo, uma espécie de bermudas de seda, foi empurrado para dentro da viatura policial. Os passantes, já amontoados, assistiam a abrupta cena. Decepcionados, a maioria logo dispersada, seguiram seus rumos diante do sorriso amarelo de Kaspar.
A ronda de viatura pareceu fazer-lhe bem, não entendia muito bem os olhos vidrados dos agentes policiais e o ritmo do carro que traçava uma rápida trajetória fazendo curvas fechadas e desfazendo algumas barracas ambulantes com seus retrovisores. Kaspar Hauser não trouxera sua carta, seu pouco dinheiro. Estava de mãos vazias.
– Seu nome?
– Kaspar Hauser. Gostaria de ter participado das eleições, mas dormi durante muito tempo.
– Quanto tempo?
– Não sei, respondeu Hauser com ternura.
– O Senhor está aqui sob a suspeita de promover a candidatura do Senador Renan Calheiros por meios ilícitos e ao mesmo tempo ter faltado com respeito à mulher, candidata também ao Senado, Heloísa Helena.
Com um falar desleixado o agente investigou os últimos três dias de Kaspar Hauser e o liberou por falta de provas. O retorno ao hotel demorou horas em ziguezague pelo centro da cidade, desde o posto policial, Central Integrada de Proteção ao Cidadão (CIAPC), Avenida Assis Chateaubriand, na praia do Sobral, até a Praça do Zumbi dos Palmares, próximo à estação ferroviária. Chegou à portaria do hotel e sentou no sofá da recepção e falou sem parar. Repetia o que ouvira nos últimos dias em carros de propagandas, aparelhos de TV e rádio de vizinhos e da recepção, dizia que queria ser como o pai e que não gostava nada da idéia de não poder votar.
A imprensa fez plantão e registrou tudo o que dizia o cidadão Kaspar. Logo chegaram com assistentes sociais e conversaram com ele, que agora com o rosto mais relaxado, perguntava se poderia ainda votar no segundo turno das eleições 2010. Soube que com apenas três reais, pagaria a multa por não ter comparecido às urnas e estaria quite com a justiça eleitoral. Exigiu almoço, roupas novas e um carro de som para fazer campanhas. Momento no qual a assistente social lançou mão do seu celular e ligou para a ex-Senadora Heloisa Helena que retrucou ao pedido de ajuda alegando que não funcionava como balcão de empregos. Neste momento, um rapaz de barba cerrada, voz impostada e em tom baixo falou para Kaspar que era do Ministério da Defesa Social e que disponibilizaria a pedido do presidente da republica tudo que pedisse Kaspar.
Devidamente asseado, bem vestido e à vontade, começou sua peregrinação no luxuoso carro com aparelhagem de som, um BMW negro, quero apenas ser como meu pai, dizia, mas não me incomoda ser adotado por Lula ou Dilma Roussef, apenas exigia dignidade e liberdade de expressão. Kaspar Hauser não era tão ingênuo como alguns pensaram. Kaspar Hauser seria ainda um especialista assessor político brasileiro. Trocou algumas figurinhas com assessores da presidência brasileira e pediu para ir até ao seu hotel, que exigiu fosse o mesmo de quando o encontraram e foi assistir DVD e brincar com seu novo aparelho celular que havia ganhado para eventuais necessidades de comunicação. Achou uma cédula de 20 reais e guardou-a embaixo da cama, como se aquela nota valesse mais do que os 100 reais que colocaram em seu bolso. Aproveitou bem o ócio daquele dia. E pensava, com olhar perdido dentro do quarto, boca entreaberta e disforme deixando aparecer seus alvos dentes, devo votar?
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