Ricardo Rodrigues

Do Pirão à Constituição da Mandioca

Por ocasião da passagem da presidenta pela terra do fumo para lançar o programa ‘Água para Todos’ e inaugurar uma casa-de-farinha melhorada.

“Quando falamos de pobreza, a parte mais conhecida é a material, econômica, quantitativa, expressa em múltiplas carências como de renda, moradia, emprego, alimentação, etc.” (Pedro Demo)

A pesquisa científica contribui para esta visão unilateral induzindo que o mais importante no fenômeno da pobreza é a dimensão que o método pode medir, não aquilo que mais compromete a vida do pobre. Esta “ditadura do método”, segundo o autor, reduz o fenômeno àquilo que se pode mais facilmente manipular, deixando de lado o que talvez seja a dinâmica mais profunda da pobreza: sua politicidade. Ser pobre não é apenas não ter certas coisas. Pobreza é carência politizada, no sentido de a carência servir para o favorecimento de alguns em detrimento de muitos. Seca gera pobreza quando aparece a “indústria da seca”. Uma carência material se converte em ocasião para angariar privilégios e impor exclusões.

O parágrafo e a frase acima são do texto “Pobreza Política” de Pedro Demo, onde fala da pobreza social, política e das políticas compensatórias, define com exatidão a sensação do lançamento do programa ‘Brasil sem Miséria’, nesta segunda (25.07) em Arapiraca. É muita farinha para pouco pirão. Ou melhor, para não ser pessimista, ainda que pouco, já temos o pirão: O que nos falta, a nós pobres e imigrantes do nordeste, é a “mistura”.

Nesse sentido, daria para ter hino e até bandeira do pirão. Na bandeira um prato com pirão e um par de talheres, igual a um dos símbolos do sub-programa do ‘Fome Zero’. Seria a versão do Programa no Nordeste: ‘Pirão Zero’. A música ideal também já tem a do Djavan que fala para o Brasil que “farinha boa é a que a mãe manda lá de Alagoas”. Cerimonial perfeito: todos com a mão no peito, hastea-se a bandeira do pirão junto com a do Brasil e de Alagoas e, um prato gigante de pirão no palanque que selará o convênio da mandioca. Pronto. A república nasceu aqui, mas sua democracia inicial foi pensada na base da mandioca. Vimos dela e para ela voltamos.

Aliás, nada mal o marketing para rememorar o nascimento da república. Aqui ela nasceu. E nesse lançamento do Brasil sem Miséria com ênfase na mandioca, nos remete também na época do Império em 1823, no primeiro projeto de constituição que ficou popularmente conhecido como “Constituição da Mandioca”. Fracassou pelo golpe de Dom Pedro I ao determinar o fechamento da Assembleia Nacional Constituinte em vista da iminente derrota da defesa dos interesses do Brasil na votação da Constituinte Portuguesa em 1821, segundo argumentou.

Essa Constituinte foi convocada no inicio de 1823 a partir de 3 de maio, logo após a independência do Brasil em 7 de setembro do ano anterior. Os representantes das Províncias reuniram-se, a fim de elaborar a primeira constituição da nação recém-criada. Levou esse nome popular (constituição da mandioca) devido aos critérios que foram estabelecidos pelos eleitos na elaboração da Constituição. Para elaborar um anteprojeto constitucional, foi designada uma comissão composta por seis deputados e o nome com que veio a ser conhecida deveu-se ao modo com que instituiu o voto indireto censitário, em que os eleitores do primeiro grau (paróquia), tinham que provar uma renda mínima de 150 alqueires de farinha de mandioca. Eles elegeriam os eleitores do segundo grau (província), que necessitavam de uma renda mínima de 250 alqueires. Estes últimos, elegeriam deputados e senadores, que precisavam de uma renda de 500 e 1000 alqueires respectivamente, para se candidatarem.

Temos um território de cerca 100 mil hectares distribuídos em cerca de 180 assentamentos em Alagoas, fora os criados e mantidos pelo estado. Sem falar na agricultura familiar que politicamente engloba, ou engole o programa de reforma agrária.

Recentemente um retro-superintendente, vangloriava-se de ter aumentado o orçamento do INCRA deste estado da casa de duas dezenas de milhões para pouco mais de uma centena. E mesmo esse aumento merecido, mas a reforma agrária por aqui, tanto quanto nacional, não é referência em distribuição de renda, e talvez nem em distribuição de terras. A renda dos assentados só os coloca das estatísticas da pobreza rural. Não temos dúvida que melhorou a vida de alguns pobres ou miseráveis. Ou no mínimo aliviou a cidade pelo fardo que diz carregar com tanta demanda de serviços para atender a tantas favelas e grotões ou bairros totalmente desprovidos de infra-estruturas. Mas parece um processo de favelização do campo e com uma expressão sem igual na atualidade de uma verdadeira luta de classe.

Com um potencial desses, vem a presidenta injetar dinheiro numa “fabrica de farinha”. Bom para Arapiraca, mas que não seja essa a síntese do programa para Alagoas. Que viesse apenas lançar o Água para Todos. É um bem inegável á sobrevivência humana e qualidade de vida, além de uma dívida das elites e governos desse país para com os pobres e miseráveis excluídos, além do mercado de trabalho também dos bens de primeira necessidade, do básico para sobreviver ainda que sem dignidade.

Enquanto isso nos assentamentos a miserabilidade é profunda. É uma estrada intrafegável mesmo depois de projetos de recuperação de estradas, e também pela concepção e valor do crédito, da distribuição, da aplicação e fiscalização além das mudanças constantes das Instruções Normativas de acordo com o humor da oposição. E em qualquer ataque o governo ao invés de equipar o INCRA dotando-lhe de estrutura, de pessoal e equipamentos para promover a reforma agrária e fiscalizar aplicação dos créditos e projetos, muda a regra do jogo e até cai em contradição com tantas normas, para desviar a atenção dos partidos que mesmo na base do governo são visceralmente contra reforma agrária.

O agricultor assentado já brigou, lutou literalmente para ter acesso a terra, ou melhor, comprar a terra, pois será pago tanto quanto toda infra-estrutura feita no assentamento. É um crédito como qualquer outro junto a um banco ou à moça do balcão. E porque tanta pressão para produzir, para organizar-se, para dar certo. E os que pegam dos bancos oficiais, nada? Não é à-toa que estamos falando de meio de produção – a terra – segurança nacional, produção de alimentos e manutenção de muitas famílias com dignidade no campo versus propriedade privada de umas poucas famílias e inchaços populacionais nas cidades, criando bolsões de miséria e “matéria-prima” para a criminalidade.

E todos sabem que não tem nada de revolucionário na reforma agrária em curso desde o período militar até nos governos atuais. Houve avanços, mas nada estruturante e à custa de muita luta e algumas centenas de cadáveres, processos, prisões e denúncias de violação de direitos humanos que o país sofre em organismos internacionais. Isso é um programa de governo que ainda é controlado pelas elites latifundiárias e agroindustriárias. Andar com bonés e apoiar o movimento sem terra em público ou em universidades é status, placa de ideologia ou pegação. Mas não revolucionário. Se assim fosse, andariam com as camisas do ‘Fome Zero’, do ‘Bolsa Família’. Mas, forma opinião e ganha uns e ilude a outros. E faz bem para quem usa. É mais estruturante, mas não revolucionário.

Sem falar na política orçamentária de faz de conta e que é mais um jogo entre governo pela sua base e a oposição. No final o governo aplica o que quer e quando quer e usa as emendas velhas nos remendos novos nos bastidores da política. Mas enquanto não é aprovado ficam mantendo a máquina pública apenas para não parar e mandar os funcionários para casa. Se fosse uma empresa trabalharia com entressafras do orçamento. Trabalhava seis meses, liberava a maioria e mantinha apenas alguém para acender e apagar as luzes e fazer a faxina e protocolos para ao próximo período.

Todos os contratos do governo são sempre com muito atraso. Para começar e continuar obras. Às vezes atravessa mandatos inteiros ou governos. No Incra não é diferente. As obras de estradas, água e topografia essencialmente estruturante para os assentados ficam até seis meses sem fazer os pagamentos das empresas responsáveis pelas obras que acabam parando e atrasando a obra que numa chuva, acaba tudo – de pouco ou de ruim – que foi feito, (en)carecendo refazer o projeto .

O serviço de ATES, por exemplo, (assistência técnica, social e ambiental à reforma agrária) já chegou a atrasar cinco meses. Como a empresa vai manter técnicos no campo nessa instabilidade? E mantém. Não pergunte como! E os encargos sociais que se atrasar paga-se multa. Como os técnicos vão manter suas famílias e as contas pagas se trabalham e não recebem? E ainda tem umas auditorias dos TCUs e CGUs da vida que fiscalizam ONGs (e devem) e deixam prefeituras correndo soltas na roubalheira. Quem determinou essa prioridade? Sem ATES hoje inviabiliza-se todo manuseio com projetos e créditos junto aos bancos e ao Incra: os bancos só liberam projetos se além de elaborados tiverem acompanhamento técnico e a autarquia federal só mediante projeto elaborado com o devido acompanhamento da ATES.

Estamos aquém na organização social, da produção, da organização territorial e espacial dos assentamentos, da forma como é realizada a topografia para parcelamento para ceder para o agricultor um pedaço de terra que varia de 4 a 6 hectares. Sem a mínima capacitação. Tão importante quanto manter uma política de assistência técnica pós assentar é treinar, capacitar antes de acessar a terra. Ainda enquanto estão em acampamentos, de preferência para ver suas aptidões. Os bancos que financiam negócios para pobres empreendedores o fazem com garantias e viabilidades comprovadas além da capacidade do empreendedor.

E precisamos da MISTURA para esse pirão. Apenas para modernizar as usinas e destilarias e renovar os plantios de cana, fora outras linhas, o BNDES anunciou 35 bilhões para o setor sucroalcooleiro sem querer saber dos estragos sociais, dos desempregos na modernização da colheita ou dos abusos ambientais que isso incorrerá. Mas, para assentamento vem fábrica de pirão com direito a presença da presidenta. Carecemos de plantar com tecnologia e planejamento capaz de nos lançar nos mercados. Industrializar e agregar valor rende três vezes mais. Mas tem que ter diversidades culturais.

Não dá para plantar e esperar o ciclo de culturas longas para poder vender e comer, ou não ter estradas para escoar. Não fiquemos apenas nas feiras da reforma agrária, que são ótimas para um marketing, para quem vendeu naquele momento – apurou mais do que nas feiras dos municípios – para os governos que gastou pouco com o “Bolsa Feira” ao invés de fazer verdadeiros investimentos com parques mini-industriais e de médio porte (para ganhar três vezes mais) e não complexo industriais ou monumento para os quais jamais terá adesão dos agricultores.

Reforma agrária revolucionária de fato será com terras tomadas pelo governo, impondo limite de propriedade para impedir reconcentração de terras. E como patrimônio da união jamais será dado título definitivo a não ser de cessão por questões de segurança nacional, de produção de alimentos, de controle de demandas e inflação dos alimentos, de equilíbrio das políticas e serviços urbanos, com créditos totalmente subsidiado pela nobre tarefa de produzir alimentos para que chegue à mesa acessível, com o governo apontando em parte para o que deve ser tal crédito para estoques estratégicos.

É pegar a terra e antes de colocar a família, estruturá-la com água, estrada, energia, casas, fábricas coletivas de beneficiamento e agregação de valor, parcelamentos de lotes – por ser sagrado e cultural um espaço familiar, mas reservando uma parte para uso coletivo como para área irrigada ou plantios em extensão numa mesma faixa de solo com vocação para certas culturas com cada família tendo seu trecho nesse plantio para tratos culturais. Seria mais fácil e cada um teria uma fração de terra irrigada podendo plantar mesmo que fora de época e o ano todo do que colocar uma irrigação em todo assentamento. Sem falar em lazer, saúde, educação, creche, formação técnica, entre outras não publicáveis.

Mudaram a política de pão e circo. Trocaram o pão por pirão, mas animação continua. Agora é pirão e crediamigo para os pobres do campo e cidade e volumosos recursos para pesquisas e indústria para as elites, que às vezes usam as terras para pegar empréstimos várias vezes e acima do valor da propriedade. Tem uma área na hoje Agrisa que no processo de vistoria descobriu-se cerca de trinta penhoras nos bancos oficiais no mesmo imóvel. Se a agricultura familiar comprovadamente produz 70% dos alimentos que se consome no Brasil e a esta se destina 16 bilhões e ao agronegócio 35 bilhões. Não seria justo inverter esse crédito ou ser igual? Seria a importância econômica e estratégica para o país exportar tendo alimento mais baratos e acessível.

O que seria lançado em outra região ou estado? Na Bahia seria dendê e vatapá? Noutra Água e peixe, água e palma, caviar e vinho. Uma coisa o agricultor sabe bem. Mandioca na água apodrece. Mas tem um lado bom. É dessa massa puba que sai a massa de bolos e mingaus entre outras nas mesas criativas. Entre o pirão e o bolo prefiro o segundo. o problema sempre foi deixar crescer para repartir, ou como repartem.

Abraços socialistas e revolucionários

Valdemir Agustinho

Pesquisados:

1. “POBREZA POLÍTICA” de Pedro Demo
2. wikipedia

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