Kaspar

Nada lhe fazia sentido

Onze de abril de dois mil e onze. Era noite. A assistente social falou com o porteiro do pequeno hotel e disse procurar Hauser. O porteiro, monossilábico, disse o número do quarto.

A senhora subiu as escadas com lentidão, bateu à porta. Kaspar estava assistindo TV e pareceu não gostar da interrupção. Fez boca de peixe. A assistente bateu à porta novamente e esperou. Escutara sons de TV e presumira que Kaspar estivesse no quarto.

Kaspar calçou suas botas vagarosamente, sem meias e enlameadas. Ainda com suas compridas roupas de baixo, abriu a porta. Um sorriso parecia-lhe querer sair dos lábios ao ver a mulher. Logo, parou e voltou os olhos para a TV colocada na parede do quarto.

A mulher hesitou algum instante, entrou, encostou a porta e foi sentar na enorme cama do hotel. Kaspar caminhou até sua poltrona, ainda quente, satisfeito olhou para a TV. Pensou puder assistir ao programa que tanto o divertia.

A assistente social disse-lhe que era do Hospital Geral do Estado e gostaria de fazer-lhe algumas perguntas. Kaspar sorriu e foi entendido como uma afirmativa.

Seu nome completo? Kaspar continuava sorrindo. As imagens no monitor da TV e da mulher misturavam-se em sua mente. Kaspar pronunciou lentamente seu nome. A mulher anotou no papel e com um sorriso na face, continuou. Idade? Ele olhou para mulher e estendeu-lhe a mão.

Surpresa, dirigiu o braço na direção de Kaspar e tocou às extremidades dos seus imensos dedos. Kaspar levantou-se, sentou-se ao seu lado e abraçou-a suavemente.

A funcionária pública tentou fugir dos seus longos e pesados braços e da sensação de asfixia. Lenta como uma lesma, desvencilhou-se do grande homem que a olhou com tristeza.

Olhava para as imagens no monitor e para a blusa da assistente social. Parecia estar tudo embaçado e de cabeça para baixo. Seus olhos umedeceram-se e chorou.

TV, assistente social, a cama… Nada lhe fazia sentido. Sentiu um desconforto indescritível. A assistente chamou-lhe pelo nome seguidas vezes. Hauser fez careta, bufou produzindo um estriduloso som.

Amedrontada, a funcionária lentamente levantou da cama deixando caneta e papéis cair no chão, abriu a porta e saiu, desceu rapidamente as escadas. Um Van Mercedes Bens esperava-a. Abriu a porta com dificuldade e pediu para o motorista, entre soluços, que a levasse para a casa.
Ainda olhou para cima a fim de achar Kaspar quando ouviu uma espécie de uivo grave que só aos poucos decifrou, vinha da janela do quarto cento e treze: amor.

Tudo aquilo para Kaspar lembrava-lhe morte, ponta-pé, tiros, linchamento. Visitas, figuras na TV, porta, janela e náuseas. Até aquele momento sua inspiração era a vida, seu ofício, existir. Idéias mórbidas começaram a perseguir-lhe.

Se tudo em Kaspar era mistério, seu espelho era o apagar das luzes, foi assim que passou a escutar em mp3 uma linda marcha fúnebre que passou a ser sua música favorita. Acordava cedo, com sua companheira de morte.

Algo que procurava em sua face, no pequeno espelho do banheiro do hotel, encontrara na bela marcha de Chopin, em seu pequeno netbook. Condolente tomava seu banho matinal.

Durante meses enxugar-se-ia, vestiria suas roupas de baixo e se aprontaria para o dia que lhe começava a qualquer hora. Seu espírito caminhava de acordo com o espaço do seu pequeno mundo, seu pequeníssimo continente de poucas palavras.

Sua marcha fúnebre, seu sorriso largo, ingênuo, incitava ódio, revelava ternura. Ou Kaspar entraria em um curso de língua portuguesa ou seria apedrejado em bem pouco tempo.

Beatrix chegou logo após a transtornada visita da assistente social, deixou sua bolsa em cima da poltrona, esquentou água para preparar a banheira para Kaspar. Transtornado, precisaria voltar a si e dormir tranquilo.

Este Blog é independente, todo conteúdo é de responsabilidade do seu idealizador.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *